Anacoluto: caffeine for the mind, pizza for the body, sushi for the soul.

"We're not, as some people maintain, obsessed with pop culture so much as we're obsessed with its possibilities for stratification and dateability." (Thurston Moore)

27.1.03

É de bom-tom não gostar de lugares-comuns. Com efeito, detestá-los é quase tão importante quanto saber a forma plural correta de "lugares-comuns". Talvez estejamos sendo lentamente envenenados pelo fascismo da originalidade. Alguns clichês são muito interessantes e muito úteis, e embora não se pretenda literarizar uma enumeração deles, talvez um pouco de senso comum não faça tão mal.

Ou talvez eu esteja emocionalmente vulnerável hoje. Mas, ao ponto. Um dos clicados que irritam é o famigerado "a economia é uma ciência social".

Ora, o contato que eu tive com as ciências sociais própriamente ditas - a sociologia, a antropologia, a ciência política - me trouxeram o sabor de um exercício intelectual amorfo e fascinante, em perpétua busca de seu próprio estatuto. Ainda aprecio muito as leituras de antropologia (o "Tristes Trópicos" de Levi-Strauss, "Os Moleques de Bogotá" de Jacques Meunier) mais pela sua incerteza de quase-ciência em busca de afirmação, pela constante rediscussão dos próprios limites, dos próprios objetivos, do próprio papel. "Tristes Trópicos" não como tratado de etnologia, mas como épico sobre a própria etnologia, ou como narrativa da angústia do próprio Levi-Strauss como lúmpen-intelectual sem saber direito qual é o seu lugar no mundo:

"Faltam-me aptidões para guardar prudentemente em cultivo um domínio de que ano por ano eu recolhesse as messes: tenho uma inteligência neolítica. Como as queimadas indígenas, ela abrasa, por vezes, solos inexplorados; fecunda-os, talvez, para dêles tirar apressadamente alguns frutos e deixar atrás de si um território devastado. Mas naquele tempo eu não podia ter consciência dessas motivações profundas.


Aprendi da antropologia - ou do meu contato neolítico com ela - a minha perspectiva de análise sobre cultura. Escrevo sobre rock porque é um fenômeno cultural fascinante, gotejando de significados a cada segundo, a cada nota. Coldplay só faz sentido em relação a Radiohead que só faz sentido em relação a My Bloody Valentine que só faz sentido em relação ao The Clash que só faz sentido em relação a The Who. É um sistema de complexidade aparentemente infinita. E pra ficarmos ainda no "Tristes Trópicos",

"A humanidade se instala na monocultura: ela se prepara a produzir a civilização em massa como a beterraba. Seu trivial só apresentará esse prato"

Somos uma sociedade produtora de cultura, e embora tenha alguma aspiração a ciência, a objetividade, a antropologia e a ciência política entendem bem que, no fim, não só o seu objeto como o seu próprio corpo é um objeto cultural, portador de significados. E a economia?

Atribui-se a Paul Krugman a velha piadinha do economista indiano: se acumular karma bom nesta vida através das boas obras, nascerá físico na próxima; se acumular karma ruim, nascerá sociólogo.

Ora, os métodos da economia estão muito mais próximos da modelagem objetiva da física do que do divagar auto-construtor da antropologia. É claro que as premissas fundamentais da física são estabelecidos empíricamente, enquanto a economia parte de pressupostos simplificados que podem ser colocados na conta de leituras parciais, culturalistas e portanto antropológicas. E como o próprio Krugman tenta explicar, a teoria keynesiana ocidental não parece surtir muito efeito no Japão.

Ainda assim, a modelagem econômica assemelha-se mais a uma certa física teórica que parte de premissas abstratas para tirar conclusões contra-sensuais. A literatura explicita pelo menos dois pontos em comuns muito fortes - dados empíricos caros e teoria barata.

Mas a economia - a ciência econômica - está sempre sendo sujeita aos constrangimentos da política, algo de que a física teórica não pode se queixar. Por mais sangrenta que se torne a discussão acadêmica entre, digamos, as hipóteses dicotômicas do universo estacionário e da expansão cíclica, a física não sofre a pressão da política extra-acadêmica.

Por sorte, não estamos sozinhos. A recente discussão sobre o efeito-estufa dá aos metereologistas uma vaga idéia da frustração de ver formulações puramente científicas submetidas à ordem de suas conseqüências políticas. Há uma boa possibilidade, sustentada por cientistas sérios fundamentados em dados empíricos sólidos de que o tal aquecimento global causado pela poluição não esteja acontecendo de todo.

Na verdade, a discussão toda é um pouco complexa demais para ser discutida por leigos em botequins. Mas decisões muito importantes sobre a própria forma como compreendemos a natureza do fenômeno climático estão sendo tomadas por razões políticas. E isso é muito, muito sangrento.

Essa ingerência política é uma constante na ciência econômica.

E ver o Márcio Moreira Alves regurgitando sobre fuga de divisas baseado no que entendeu de Mundell-Fleming no botequim é muito, muito sangrento.

De modo geral, toda a discussão sobre contas externas recebe um peso desproporcional, e perde completamente o sentido se vista fora de um modelo macroeconômico mais abrangente. Mas se as circunstâncias políticas o exigem, podemos dar o peso que quisermos ao que quisermos. Talvez sejamos culpados, por exemplo, de superestimar os custos sociais da inflação.

Tenho a sensação de que o novo governo é culpado de superestimar o valor do planejamento econômico. Fica o sabor de mais politização na pouca esperança de tecnicismo que nos resta.

Um hayekiano diria que estou sendo imaturo nessa dialética toda. Tento, com sinceridade, não ser sectário. Uma parcela grande demais da cena blogueira de direita é dogmáticamente austríaca. Fui aos poucos flutuando para a direita porque passei a acreditar na espontaneidade, no poder subversivo do inesperado. Há uma certa microeconomia marginalista a favor dessa sensação política, e uma certa macroeconomia "estruturalista" contra isso. Não sei. Não tenho nem certeza de que uma sociedade mais justa seja necessáriamente uma sociedade mais igualitária.

Sei que me incomoda quando delega-se a um grupo o poder de mudar a própria essência do jogo. Mesmo com o apoio da maioria, o planejamento industrial, a imposição de prioridades, a macroeconomia estruturalista uspiana me incomoda porque representa a politização da existência, o diminuir do indivíduo.

E depois dizem que vivemos num mundo muito individualista, e seilámaisoque. Antigamente, parte da diatribe da esquerda falava da excessiva massificação promovida pelo capitalismo. Fui de esquerda por ódio à música de massas. Hoje, a diatribe da esquerda fala do excessivo individualismo promovido pelo capitalismo. Será que é porque a massificação que a própria dialética interna do planejamento central se tornou óbvia?

Puxa, "dialética do planejamento". Como vamos longe. Uma engenharia social por um lado lê as necessidades da sociedade, mas por outro lado molda essa mesma sociedade para que as engrenagens encaixem. Adaptar-se e adaptar. Oh, Guido Mantega, capta a essência dessas coisinhas...