Anacoluto: caffeine for the mind, pizza for the body, sushi for the soul.

"We're not, as some people maintain, obsessed with pop culture so much as we're obsessed with its possibilities for stratification and dateability." (Thurston Moore)

4.2.03

O assunto de hoje é espinhoso. A situação induziu-me a tentar esboçar algumas críticas construtivas a gente que apóio, e que escreve muito mais e muito melhor do que eu - às vezes sem a menor base de comparação. Mas talvez por ser recente, ainda, o meu passado esquerdinha, enxergue uma ou duas coisas que podem ter se perdido na velha armadilha da gestalt.

O motivador da diatribe foi a notícia de que Sandro Guidalli foi defenestrado do portal Comunique-se.

Surpreendeu-me bastante quando soube que Guidalli estava escrevendo para um meio relativamente mainstream - pelo menos no contexto da pequena comunidade pensante que se preocupa com questões de mídia e representação e usa a Internet regularmente com tais fins intelectuais. A verdade é que a tal direita está exilada em blogs e sites específicos, em geral antipáticos, como o MSM.

Tão sagrado quanto o direito à livre expressão é o direito à antipatia. Talvez Guidalli tenha sido antipático no Comunique-se. O próprio mentor intelectual da turma, Olavo de Carvalho freqüentemente o é. Filósofo no sentido mais profundo do termo, de uma forma que a Chauí e o Konder jamais serão, é rara a coluna desta figura que não traz algo de suma importância para a reflexão sobre os temas brasileiros. Mas às vezes é difícil apoiar Olavo.

Incondicional admirador, esta semana senti-me constrangido em referir alguns colegas à sua coluna n'O Globo. Olavo de Carvalho se torna antipático ao adicionar a uma narrativa que já é bastante carregada no tom militante uma sidenote supérflua em que se queixa das blasfêmias sofridas por "Nosso Senhor Jesus Cristo" (sic).

Não discordo de todo da queixa. Aprendi a admirar a Igreja Católica e o incrívelmente complexo sistema da religião, mas o caso da blasfêmia precisa ser defendido com cuidado. Quase que por definição, e com tão raras exceções que justificam um comentário como este, o público em potencial de um autor mais sofisticado como Olavo de Carvalho é secularista.

Ora, o secularismo militante é tão imaturo quanto o igualitarismo de centro estudantil, e é preciso admitir que a doutrina social da Igreja é uma das formas mais aceitáveis de socialismo ao pregar, no princípio da subsidiariedade, uma maior independência de instâncias menores em relação a um Planejamento Central acachapante. Os recentes comentários de D. Mauro Morelli sobre o Fome Zero ilustram bem essa diferença de tom entre um socialismo estatista e um socialismo subsidiário.

O ponto é que Olavo de Carvalho contamina da aversão secularista a essa militância religiosa o resto do seu ponto, cada vez mais aceito, de que o narcotráfico tem ligações políticas no mínimo muito complicadas. Sempre que indico um texto de Olavo de Carvalho a alguém, preciso cercar-me de preliminares. E nem sempre é fácil de explicar que as críticas que ele faz às políticas de representação do políticamente correto são válidas mesmo que descontemos as suas ocasionais metamorfoses em um doudo homófobico mais comumente encontrado em borracharias e estações de troca de autopeças.

Não pretendo negar a Olavo de Carvalho, pensador provávelmente maior do que jamais serei, o inalienável direito da antipatia. Mas me parece um grande erro de estratégia. É difícil separar pessoa e argumento para quem foi educado na paranóia do quo bono - e quem não ouviu ainda que o que o Washington Times publica é desprovido de valor porque o Rev. Moon está entre seus acionistas não está acompanhando as discussões direito.

Por esse estranho método crítico, a síndrome de Estocolmo é uma das formas mais sinceras e válidas de rebelião, posto que não tem segundas intenções. Por outro lado, visto que a iminente guerra com o Iraque tem questionáveis segundos propósitos comerciais, passa a ser patentemente falsa a ameaça concreta que representam os arsenais de armas químicas de Saddam Hussein. É até um pouco ridículo, mas é a lógica dos pequenos círculos pensantes que são mesmo marginalmente capazes de entender Olavo de Carvalho.

Dada essa forma tortuosa de pensar, a cadeia se fecha: Olavo de Carvalho critica o políticamente correto porque é homofóbico. São contadas as pessoas que chegam a perceber a sutileza de que, apesar de (aparentemente) homofóbico, Olavo pode ainda estar certo. Às vezes, as coisas precisam ser entregues ao leitor a medio masticar. Quem não acompanha de perto, vê em Olavo de Carvalho um lunático retrógrado presa de uma incrível paranóia anticomunista. Dizem que muitos grandes gênios acabam alienando conscientemente o seu público (e o rock está cheio desses casos), mas às vezes Olavo de Carvalho torna a causa liberal muito mais difícil de defender.

A antipatia é um erro de estratégia.

Ontem, estava lendo um texto de um colega esquerdinha da escola de comunicação onde estudei. Ele se queixava amargamente dos políticos, da corrupção na vida pública, da cegueira do esquerdismo estreito e da capilarização da corrupção a partir de um planejamento central ineficiente. Este meu amigo havia decidido fazer um documentário sobre o FSM. Quando descobriu - e sabotou - alguma armação do DCE com os motoristas de ônibus, teve o seu documentário sabotado, as fitas roubadas, e através de um golpe de mestre que só se aprende na escola de politicagem do movimento estudantil, acusado de conspiração.

Chegou a um ponto que disse algo do gênero "pronto, não voto mais. Política é uma coisa muito sangrenta". A única coisa que pude responder foi "parabéns, você descobriu o liberalismo". Mas não, "liberalismo" é o que doudos homofóbicos como o Olavo de Carvalho e anticomunas paranóicos como os meninos do MSM pregam. Essas pessoas estão muito próximas de ver a luz, mas o método do quo bono as mantém presas neste limbo político.

São estas pessoas que a "direita" liberal precisa cooptar.



A ousadia de criticar Olavo de Carvalho me deixa pisando em ovos, mas talvez tenha conseguido servir de autocrítica coletiva. Porque depois do Olavo de Carvalho estão pessoas como Evandro Ferreira, Sandro Guidalli e Álvaro Velloso de Carvalho - e depois destes, estamos dezenas e dezenas de pequenos blogueiros de viés liberal. Uma dúzia de trutas de rio no meio do oceano, mas há coisas que precisam ser ditas.

Ou talvez tenha sido um incrível acesso de arrogância. Não por acaso, meu nickname no ICQ é "Hybris".