Anacoluto: caffeine for the mind, pizza for the body, sushi for the soul.

"We're not, as some people maintain, obsessed with pop culture so much as we're obsessed with its possibilities for stratification and dateability." (Thurston Moore)

11.5.03

Ainda "Cidade de Deus"

A lista CINEMABRASIL esteve por séculos numa polêmica sobre o filme "Cidade de Deus" - na maior parte do tempo, no nível bobo que caracteriza sua fauna. O pior é que o meu texto nessa história não ficou tão bom, mas ando com uma tal escassez de coisas para postar - que possam ser desenvolvidas em pouco tempo, anyway - que manterei o Anacoluto vivo com um copy-paste de uma das coisas que escrevi para lá.


"Façamos a revolução primeiro; a poesia virá depois". De quem era mesmo essa frase? Apollinaire ou Maiakowski, talvez. Há um bom tempo que não tenho mais ... tempo ... de pensar nessas coisas.

Bem, a história de Caetano e as guitarras não surgiu por acaso no meio do patrulhamento ao "Cidade de Deus". O Assunção pinta exatamente o quadro que eu tinha em mente, mas tinha medo de montar porque não vivi a época e podia estar cometendo injustiças. Mas eu consigo partir das premissas da Assunção para chegar às minhas conclusões.

Estamos no início dos anos 70. Hendrix e McLaughlin estão dando à guitarra o que Chopin e Lizst deram ao piano - respectivamente personalidade e virtuosismo - e o instrumento está deixando de ser uma característica de cantores caipiras de country para ser incorporado ao vocabulário musical de toda uma cultura que não é americana, mas universal.

Ora, na narrativa do Assunção (e de alguns outros), a rejeição às guitarras de Caetano não é estética, é política. Há um momento político complicado. E aliás, muito mal interpretado, com base em algumas monografias do René Dreyfus que na verade ninguém leu - ora, um regime ultranacionalista a ponto de implantar coisas bizarras como uma reserva de
mercado para informática seria levado ao poder pelo capital internacional?

"Pra não dizer que não falei" (a canção do Vandré) é, sem meias palavras, música ruim.

Qualquer tecladista de churrascaria pode confirmar isso. Ora, se um produto estéticamente pobre está sendo promovido em detrimento de coisas mais sofisticadas (o exemplo clássico é o "Sabiá" de Chico) em nome da política, estamos ficando ideologizados demais.

Mas vivemos num regime capitalista. O que você faz com o seu dinheiro é problema seu. Na verdade, isso é uma coisa ótima: existe uma constante demanda por música ruim (e nisso a egüinha pocotó é herdeira de Vandré) que seria frustrada se pessoas estéticamente sofisticadas tivessem algum direito de cortar o barato dos outros.


O problema é que os filmes brasileiros que discutimos são pagos pelo dinheiro público. E "fazer a revolução" com o dinheiro dos outros é muito, muito desonesto.

E aí entra a patrulha. "Cidade de Deus" está sendo condenado porque não satisfaz os preconceitos ideológicos da patrulha: específicamente, porque a desigualdade social não é explicitada como a causa final de todos os problemas do mundo. Mesmo apesar de grandes concessões a esse monismo socialista pré-adolescente, como a seqüência do supermercado - em que um dos garotos é despedido injustamente do supermercado, e acaba entrando para o crime.

A patrulha exige que todos os filmes sejam emburrecidos até o nível das coisas do Ozualdo Candeias.

Eu li uma série de coisas muito mais interessantes no "Cidade de Deus", e fico triste de ver o debate se prolongar indefinidamente num nível tão elementar. Ao mesmo tempo em que a origem "social" da violência é tratada de forma muito didática, a dimensão da estratégia militar como essencial para a consolidação desse poder que é intrínsecamente militar, e
que está em guerra aberta com um poder constitucional. Fiquei em casa e li o seu e-mail porque "eles" fecharam a Linha Amarela hoje.

Sarajevo é aqui. Pra mim, isso mais do que justifica construir Zé Pequeno como Milosevic. Mas isso é outra história.

Achei que leria bons insights sobre o papel do ex-policial militar que se junta ao bando de Dadinho e que permite a vitória através de seu conhecimento técnico e estratégico. Ora, aqueles que saíram da puberdade ideológica sabem que o narcotráfico adquiriu o conhecimento militar que tem hoje com os presos "políticos" dos anos 70, treinados em guerrilha do lado de lá da cortina de ferro.

Confira as biografias e veja se estou mentindo.

O que a patrulha exige é mais do que financiamento infinito para o produto cultural que reflita a sua visão: ela exige que todas as consciências se orientem por esses preceitos: a desigualdade social é a origem última de todos os males, o capitalismo individualista é por natureza gerador de desigualdade e portanto um controle político central das individualidades acabará com todas as desigualdades e todos os problemas, quando ficaremos como a grande, pujante feliz Cuba.

Que acaba de iniciar uma das mais violentas campanhas de repressão aos "crimes de consciência" de sua história. Mas eu já estou divagando de novo.