Saudades de Fernando Henrique
Não, não é nem a recessão. As causas da recessão nunca são certas, mesmo quando estamos armados da melhor teoria econômica. Ainda sou dos que opinam que o governo anda improvisando na condução da quimioterapia da estabilização, mas não há heterodoxia completamente equivocada. Sim, a vulnerabilidade externa é um problema; sim, todo programa de estabilização inflacionária implica em um choque recessivo de demanda; sim, improvisou-se na combinação explosiva de política fiscal expansiva e tributação para tapar os gastos que a oposição não deixou que se cortasse - levando a dívida pública à alarmante situação em que está. A questão é que tudo isso são pedaços soltos de teoria sujeitos a uma interpretação leiga. E, sim, uma política recessiva pode ser razoável dadas certas circunstâncias, em que pese a carga negativa da palavra. Tudo é uma questão de custo-benefício. Valia a pena arcar com a vulnerabilidade externa, o crescimento baixo e o peso morto do Estado? Ah, isso é uma discussão tão grande...
Não, não é nem a recessão. É o ar que se respira.
São as pequenas coisas. É o populismo barato dos showzinhos de música - mesmo quando envolvem os maiores músicos deste país, como aconteceu no recente evento com Nelson Freire em prol do fomezero. É a exortação pernambucana a provar a macheza engravidando as que vierem pelo caminho. É o exílio da técnica e a promiscuidade clientelista que toma conta de cada aresta da máquina estatal. Não é apenas que a quimioterapia econômica esteja sendo levada adiante por médicos e engenheiros - são as indicações políticas para o INCA e a Câmara Técnica de Medicamentos, que estão provocando renúncias em massa. É o Conselhão de Desenvolvimento Econômico e Social, que quase virou parlamento paralelo eleito pelo presidente. É a personalização das relações políticas. É o presidente da Petrobrás anunciando a descoberta de gás em Santos para um grupo seleto de investidores. Sim, isso aconteceu. E Madam Roussef anda a minimizar esse inacreditável episódio de insider trading patrocinado pelo Estado.
Em suma, é a era Sarney de volta. E não se enganem, Sarney é a grande inspiração de Lula em quase tudo, das câmaras setoriais ao populismo em torno da palavra "social". É a desprofissionalização do Estado, a reversão de um processo que estava transformando em espírito a forma como se faz política chez nous.
Com toda a turbulência que marcou o período, Fernando Henrique deixou a nítida sensação de uma era em que se governou tentando infiltrar a técnica e a razão num espaço tão típicamente marcado pelo fisologismo mais barato e mais imoral. E nisso, fica a sensação de que FHC é maior do que o próprio PSDB, chegando a validar o projeto tucano pela força de seu próprio mito. Fico com a sensação de que o apoio explícito de FHC a José Serra teria mudado muita coisa.
Muito se regurgia sobre a força de Lula, o Sarney Reloaded, como líder carismático, e acho que se subestima a força de FHC. Adolescente, eu fui de esquerda - freqüentemente da marca mais radical, sem que nunca tenha chegado a mim o apelo de Lula ou a crítica fácil a FHC. No máximo, cometiam-se erros de cálculo, nas privatizações e na abertura comerical - que, na minha imaturidade eram o mal encarnado - sem que isso significasse que FHC não fosse o rei-filósofo que terminaria por fazer o que fosse melhor dadas as circunstâncias. Talvez o erro de FHC tenha sido ser sutil, sofisticado. Talvez a sociologia e o piano só façam falta a nós, pobres adeptos deste hedonismo intelectual vagamente proustiano.
Talvez os candidatos a presidente pudessem ser submetidos a um exame de piano antes de serem validados pelo TSE.
Tenho saudades do professor Cardoso toda vez que Luís Inácio Sarney Reloaded da Silva abre a boca para dizer que "nunca antes neste país" se fez alguma coisa. Tenho saudades do professor Cardoso quase o tempo inteiro.
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