Anacoluto: caffeine for the mind, pizza for the body, sushi for the soul.

"We're not, as some people maintain, obsessed with pop culture so much as we're obsessed with its possibilities for stratification and dateability." (Thurston Moore)

10.4.04

Chafariz

Da primeira vez que li The Fountainhead, não consegui prestar atenção em nada além da oposição fundamental entre o tipo Howard Roark e o tipo Peter Keating. As pessoas em geral têm idéias morais muito difusas, e embora eu pense um pouco mais em casos-limite do que as pessoas ao meu redor, não tenho ainda uma teoria mais geral do que é certo.

Os efeitos da identificação são difíceis de separar: até que ponto eu encontrei em Howard Roark um reflexo da minha própria filosofia de vida, e até que ponto o seu heroísmo fulgurante influenciou a forma como enquadro esses problemas de moral?

O que é nítido que apenas depois dessa leitura, passei a procurar Peter Keating, Dominique Francon e Ellsworth Toohey nas pessoas que demonstravam alguma força. A moral é uma expressão do pessimismo, e embora fosse uma taxonomia útil, não era conceitualmente diferente de procurar Oliver e Laurel Hardy. Em vários pontos, julguei erradamente pessoas como peterkeatings, e só passei a entender o impulso pragmático, insensível de algumas pessoas depois de tomar contato com um sistema taxonômico mais sofisticado - o MBTI.

Claro, por sua vez, o MBTI me trouxe a idéia de que o conjunto de motivações gerais que estão por trás das opções das pessoas passa paralelamente ao plano da moral. A linguagem clínica da psicologia funcional tem dessas coisas: naturaliza a ação humana como se esta não fosse por definição ação, sujeita a julgamento.

O MBTI me fez aceitar alguns peterkeatings na minha vida. E pode ser um pouco doloroso romper com hábitos intelectuais tão otimistas e simplificadores quando o amoralismo psicológico. E claro, as pessoas deixam marcas. Não tenho o foco irresistível de um Howard Roark (um personagem idealizado, claro), e pessoas vão se tornando importantes por razões inteiramente irracionais.

Decisões envolvem dor. Eu vou passar a vida inteira me acostumando à idéia.

Enfim. Estou lendo The Fountainhead de novo, e passando ao largo da filosofia moral. O que mais tem me impactado é a densidade da civilização e como ela se expressa na arquitetura. De fato, meus sentidos têm se aberto, embora ainda não tenha propriamente uma educação arquitetônica, e tenho começado a fazer pequenas tentativas de juízo.

Às vezes, a forma como penso em arquitetura me lembra a forma como algumas pessoas mais simples pensam em música - não como um sistema complexo de significados que começam nas opções teóricas mais profundas, passam pela construção formal e desembocam no sistema de gêneros e referências em que uma determinada obra se situa, mas simplesmente como um barulhinho organizado que agrada ou desagrada.

Tenho tomado caminhos muito mais longos que o necessário na saída do IPEA, para passar pelos meus prédios favoritos no Centro. Ainda não entendo o suficiente para esboçar um comentário, e talvez me impacte mais o clima, o mood de todo um ambiente formado por várias construções de contextos arquitetônicos completamente diferentes, do que a inteligência de um prédio específico.

E como todo garoto que descobre as dissonâncias e o heavy-metal, me atraem estruturas que quebram a coerência de uma landscape, estruturas que não deveriam estar lá num mundo perfeitamente coerente.

O Ministério da Fazenda é um pedaço de história nazista no meio de uma paisagem ensolarada que parece contradizê-la, a abundância de relógios em caracteres germânicos é testemunha de um projeto de desenvolvimento que esqueceu das pessoas para quem era pensado, e os imensos cinzeiros em forma de piras funerárias são um comentário irônico sobre a própria natureza da política.

O chafariz gigantesco na Cinelândia é uma colagem desproporcional, um relógio derretendo - uma combinação de classicismo e absurdo que foi feita com maior e menor bom senso nas artes plásticas, mas que me agrada por injetar um pouco de caos no cotidiano apressado destas pessoas todas que vivem sem sentido.

Eu poderia estar mais feliz. Mas a felicidade é por vezes contraproducente, e talvez seja verdade que nada importante acontece sem um batismo de fogo e gelo. No médio prazo, preciso aprender a lidar com as minhas emoções, mas por enquanto, aprender a ouvir a arquitetura já torna a vida uma experiência muito mais carregada de sutilezas e meios-tons.