O anacolutismo também é um antimovimento
Acho que muitos anacolutenses estão cansados de textos sobre matemática. A minha visitação teve uma queda violenta depois de "Meditando sobre Cálculo II", postagem que alguns especialistas encaram como uma mudança nos rumos do anacolutismo.
O anacolutismo continua vivo, e tem ainda muito a ver com música, política, sistemas pivotantes de significado e a firme convicção de que mais opção é preferível a menos opção. Sempre. E não é por amor à audiência que mudo um pouco de assunto hoje. De todos modos, o anacolutense descontente sempre deve manifestar-se na recentemente inaugurada caixinha de comentários aí embaixo. Mas vamos ao assunto.
Tenho percebido que boa parte da cena blogueira de direita - e nisso se incluem alguns dos anacolutenses que mais aprecio, como o Cláudio e o García Rothbard - são melômanos, partidários da música clássica. Certamente, Emperor não é a banda mais adequada para iniciar um melômano no rock. O meu próprio caminho foi tortuoso. Fui, durante a adolescência, um partidário radical da música erudita. Já fui daqueles que sabem grande parte dos recitativos de "La Vera Costanza". Sou o filho de um violonista erudito, e tive uma convivência próxima com a música que não tem preço. Principalmente quando queremos nos meter a grandes tarefas como uma atividade crítica intelectual de rock.
Recomendo uma iniciação com Univers Zero. O som e a estrutura serão familiares; o seu rock consumer típico nem mesmo perceberá que se trata de rock. E o Michel Breckermans é um oboísta muito divertido. Mais sobre isso algum dia.
Costumo ser partidário dos batismos de fogo: não há outro lugar para iniciar um fã de rock na música clássica que não a "Arte da Fuga". Tenho feito um bom trabalho nesse campo, fundamental para sofisticar a apreciação do próprio rock, mas não tentei ainda o caminho oposto. A regra do batismo de fogo mandaria iniciar um melômano com Buzzcocks ou Emperor.
Mas Buzzcocks é uma banda idiota, e Emperor não é a banda mais adequada para iniciar um melômano no rock por duas razões muito fortes. A primeira é que a sua variante extrema de black-metal só começa a fazer sentido quando você tem uma idéia muito firme do sistema de gêneros, da sua evolução, e do que uma massa essencialmente amorfa de som como "Into the Nightside Eclipse" significa em relação a esse sistema de gêneros.
A segunda é que seu disco mais importante, que discutirei hoje, é uma massa essencialmente amorfa de som. Melômanos estão acostumados à cor, e rock é, em geral, em preto-e-branco. Sei da minha experiência: enquanto eu reconhecia o estilo de alguns regentes de orquestra, não encontrava diferença funcional entre lambada, Pantera e Little Richard. De fato, Emperor é muito extremo mesmo para um fã de rock bastante avançado, daqueles que navegam confortávelmente entre a jazz-fusion, variantes excêntricas do heavy-metal e pitadas de avant-prog à UZ. Não ajuda que o disco seja mal mixado; é difícil estabelecer até que ponto a mística do "Into the Nightside" que não sobrevive em um disco muito mais sofisticado que é o "Prometheus" se deve à gravação plana, comprimida, ou à perda de vários membros fundamentais, entre eles o baixista Mortiis - que em carreira solo acabou se tornando um faux-medieval à Sopor Aeternus.
Mas esta é uma massa amorfa de som muito diferente de algumas coisas feitas explícitamente nesse sentido. Não é a musique d'ameublement de Brian Eno. E não é a dissonância-pelo-ritmo das sinfonias de Glenn Branca. Há uma estrutura bastante tradicional mantida aqui: bateria, guitarras interlocking, teclados. Uma das primeiras coisas que chamam a atenção define justamente a importância da presença de Mortiis: as suas letras. É fato que as letras de Mortiis tem muito mais de um certo sentido ozzyosbourneano de auto-paródia, de entretenimento com a própria mitologia de noruegueses vikings seguidores das antigas religiões. Mas da forma que são cantadas, as letras são essencialmente incompreensíveis - ouve-se apenas algo como uma tosse rouca, um latido, que acaba formando parte do ataque sonoro tanto quanto a barragem de guitarras e a bateria. Na verdade, a estrutura rítmica das letras é o que há de interessante aqui: sem Mortiis, os Emperor tiveram que recorrer à melodia, inteiramente ausente nos vocais aqui.
Para um fã de heavy-metal experiente - mas virgem de black-metal norueguês - e disposto a entrar nesta, a primeira audição do "Into the nightside" será principalmente uma experiência brutal, evocando paisagens geladas povoadas por guerreiros. À medida que o som vai se distingüindo, percebe-se a tempestade de gelo na interação rítmica da bateria com as letras de Mortiis. É algo bastante interessante de se acompanhar.
Mas como em quase todo álbum de rock, há coisas mais interessantes na semiogênese do que na música própriamente dita. O black metal norueguês tem um caráter de movimento que não cabe historiografar aqui. E embora de uma perspectiva puramente histórica haja marcos mais importantes como os primeiros discos do Mayhem, eu percebo o impacto cultural do Emperor como sem paralelos no heavy-metal menos mainstream.
Metaleiros às vezes têm uma obsessão por veracidade que os aliena das coisas mais interessantes do rock - em geral, longe do heavy metal, longe do purismo, em combinações inusitadas e geradoras de sentido; neste caso, o impulso pela veracidade passa longe do marketing e da inserção no gênero.
Para fazer um recorte anedótico, o vocalista Ihnsahn tem um prego imenso na testa, que ele mesmo enfiou com um martelo numa festa em um desses porões onde a disenfranchised youth se reunia para recuperar os "valores fundamentais" da civilização viking que teriam sido reprimidos pelo cristianismo - a dimensão da violência como geradora de sentido, como criadora de verdade - para usar um conceito familiar, embora não aplicável a este sistema mítico em particular, o sentido do Valhalla, da guerra como redenção.
É desnecessário ressaltar o tipo de controvérsia que isto deve ter gerado; este artigo dá toda a historiografia em detalhes, incluindo a relação complicada de religião e estado na Noruega, os personagens mais interessantes deste movimentto pseudoreligioso neo-viking. Resumidamente, os membros do Emperor começaram a se envolver em vários episódios de incêndio criminoso de igrejas de madeira do século XIII. E estão todos presos. É muito interessante ler sobre o assunto em detalhes.
O que é importante aqui é a como essa mitologia toda envolve o disco; como um movimento neoviking ultranacionalista - que rejeita até o cristianismo, presente no país desde o ano 995 como "intruso" - se manifesta através de guitarras, um dos símbolos mais vitais da civilização ianquecêntrica; como se espalha pelo mundo e cria sentidos e significados distintos para populações inteiramente alheias uma representação direta e sincera de um movimento sinceramente violento, alimentado por mitos fundadores - a citação da namorada de Insahn no artigo que acabo de lincar é reveladora: "None of the
Gods in Norse mythology are weak like Jesus is weak".
O que significa para Diego Navarro, aprendiz de economista, o consumo de uma massa brutal de som como "Into the Nightside Eclipse"? Quer dizer, eu estou aqui mais ou menos no mesmo ponto que, por exemplo, o meu amigo Caveira "Brutal", que estuda matemática aqui na PUC. Há sentido sendo criado aqui. Arte é a criação de significado. O significado está sendo constante e invisivelmente criado como a riqueza está sendo constantemente criada. Excluído o maelström técnico, o seu valor teórico, a "Arte da Fuga" é um exemplo sofisticadíssimo de códigos se interpenetrando - códigos que vêm de um contínuo de evolução que vai desde o alvorecer da música polifônica no fim da idade média.
Dito isso, Univers Zero para quem resolver se aventurar. Vale bem a pena, mesmo que você nunca vá além. Se alguém tiver uma gravação da Arte da Fuga que eu não tiver - eu faço coleção - podemos trocar em CD-R.
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