Anacoluto: caffeine for the mind, pizza for the body, sushi for the soul.

"We're not, as some people maintain, obsessed with pop culture so much as we're obsessed with its possibilities for stratification and dateability." (Thurston Moore)

31.3.03

O anacolutismo também é um antimovimento

Acho que muitos anacolutenses estão cansados de textos sobre matemática. A minha visitação teve uma queda violenta depois de "Meditando sobre Cálculo II", postagem que alguns especialistas encaram como uma mudança nos rumos do anacolutismo.

O anacolutismo continua vivo, e tem ainda muito a ver com música, política, sistemas pivotantes de significado e a firme convicção de que mais opção é preferível a menos opção. Sempre. E não é por amor à audiência que mudo um pouco de assunto hoje. De todos modos, o anacolutense descontente sempre deve manifestar-se na recentemente inaugurada caixinha de comentários aí embaixo. Mas vamos ao assunto.



Tenho percebido que boa parte da cena blogueira de direita - e nisso se incluem alguns dos anacolutenses que mais aprecio, como o Cláudio e o García Rothbard - são melômanos, partidários da música clássica. Certamente, Emperor não é a banda mais adequada para iniciar um melômano no rock. O meu próprio caminho foi tortuoso. Fui, durante a adolescência, um partidário radical da música erudita. Já fui daqueles que sabem grande parte dos recitativos de "La Vera Costanza". Sou o filho de um violonista erudito, e tive uma convivência próxima com a música que não tem preço. Principalmente quando queremos nos meter a grandes tarefas como uma atividade crítica intelectual de rock.

Recomendo uma iniciação com Univers Zero. O som e a estrutura serão familiares; o seu rock consumer típico nem mesmo perceberá que se trata de rock. E o Michel Breckermans é um oboísta muito divertido. Mais sobre isso algum dia.

Costumo ser partidário dos batismos de fogo: não há outro lugar para iniciar um fã de rock na música clássica que não a "Arte da Fuga". Tenho feito um bom trabalho nesse campo, fundamental para sofisticar a apreciação do próprio rock, mas não tentei ainda o caminho oposto. A regra do batismo de fogo mandaria iniciar um melômano com Buzzcocks ou Emperor.

Mas Buzzcocks é uma banda idiota, e Emperor não é a banda mais adequada para iniciar um melômano no rock por duas razões muito fortes. A primeira é que a sua variante extrema de black-metal só começa a fazer sentido quando você tem uma idéia muito firme do sistema de gêneros, da sua evolução, e do que uma massa essencialmente amorfa de som como "Into the Nightside Eclipse" significa em relação a esse sistema de gêneros.

A segunda é que seu disco mais importante, que discutirei hoje, é uma massa essencialmente amorfa de som. Melômanos estão acostumados à cor, e rock é, em geral, em preto-e-branco. Sei da minha experiência: enquanto eu reconhecia o estilo de alguns regentes de orquestra, não encontrava diferença funcional entre lambada, Pantera e Little Richard. De fato, Emperor é muito extremo mesmo para um fã de rock bastante avançado, daqueles que navegam confortávelmente entre a jazz-fusion, variantes excêntricas do heavy-metal e pitadas de avant-prog à UZ. Não ajuda que o disco seja mal mixado; é difícil estabelecer até que ponto a mística do "Into the Nightside" que não sobrevive em um disco muito mais sofisticado que é o "Prometheus" se deve à gravação plana, comprimida, ou à perda de vários membros fundamentais, entre eles o baixista Mortiis - que em carreira solo acabou se tornando um faux-medieval à Sopor Aeternus.

Mas esta é uma massa amorfa de som muito diferente de algumas coisas feitas explícitamente nesse sentido. Não é a musique d'ameublement de Brian Eno. E não é a dissonância-pelo-ritmo das sinfonias de Glenn Branca. Há uma estrutura bastante tradicional mantida aqui: bateria, guitarras interlocking, teclados. Uma das primeiras coisas que chamam a atenção define justamente a importância da presença de Mortiis: as suas letras. É fato que as letras de Mortiis tem muito mais de um certo sentido ozzyosbourneano de auto-paródia, de entretenimento com a própria mitologia de noruegueses vikings seguidores das antigas religiões. Mas da forma que são cantadas, as letras são essencialmente incompreensíveis - ouve-se apenas algo como uma tosse rouca, um latido, que acaba formando parte do ataque sonoro tanto quanto a barragem de guitarras e a bateria. Na verdade, a estrutura rítmica das letras é o que há de interessante aqui: sem Mortiis, os Emperor tiveram que recorrer à melodia, inteiramente ausente nos vocais aqui.

Para um fã de heavy-metal experiente - mas virgem de black-metal norueguês - e disposto a entrar nesta, a primeira audição do "Into the nightside" será principalmente uma experiência brutal, evocando paisagens geladas povoadas por guerreiros. À medida que o som vai se distingüindo, percebe-se a tempestade de gelo na interação rítmica da bateria com as letras de Mortiis. É algo bastante interessante de se acompanhar.

Mas como em quase todo álbum de rock, há coisas mais interessantes na semiogênese do que na música própriamente dita. O black metal norueguês tem um caráter de movimento que não cabe historiografar aqui. E embora de uma perspectiva puramente histórica haja marcos mais importantes como os primeiros discos do Mayhem, eu percebo o impacto cultural do Emperor como sem paralelos no heavy-metal menos mainstream.

Metaleiros às vezes têm uma obsessão por veracidade que os aliena das coisas mais interessantes do rock - em geral, longe do heavy metal, longe do purismo, em combinações inusitadas e geradoras de sentido; neste caso, o impulso pela veracidade passa longe do marketing e da inserção no gênero.

Para fazer um recorte anedótico, o vocalista Ihnsahn tem um prego imenso na testa, que ele mesmo enfiou com um martelo numa festa em um desses porões onde a disenfranchised youth se reunia para recuperar os "valores fundamentais" da civilização viking que teriam sido reprimidos pelo cristianismo - a dimensão da violência como geradora de sentido, como criadora de verdade - para usar um conceito familiar, embora não aplicável a este sistema mítico em particular, o sentido do Valhalla, da guerra como redenção.

É desnecessário ressaltar o tipo de controvérsia que isto deve ter gerado; este artigo dá toda a historiografia em detalhes, incluindo a relação complicada de religião e estado na Noruega, os personagens mais interessantes deste movimentto pseudoreligioso neo-viking. Resumidamente, os membros do Emperor começaram a se envolver em vários episódios de incêndio criminoso de igrejas de madeira do século XIII. E estão todos presos. É muito interessante ler sobre o assunto em detalhes.

O que é importante aqui é a como essa mitologia toda envolve o disco; como um movimento neoviking ultranacionalista - que rejeita até o cristianismo, presente no país desde o ano 995 como "intruso" - se manifesta através de guitarras, um dos símbolos mais vitais da civilização ianquecêntrica; como se espalha pelo mundo e cria sentidos e significados distintos para populações inteiramente alheias uma representação direta e sincera de um movimento sinceramente violento, alimentado por mitos fundadores - a citação da namorada de Insahn no artigo que acabo de lincar é reveladora: "None of the
Gods in Norse mythology are weak like Jesus is weak".

O que significa para Diego Navarro, aprendiz de economista, o consumo de uma massa brutal de som como "Into the Nightside Eclipse"? Quer dizer, eu estou aqui mais ou menos no mesmo ponto que, por exemplo, o meu amigo Caveira "Brutal", que estuda matemática aqui na PUC. Há sentido sendo criado aqui. Arte é a criação de significado. O significado está sendo constante e invisivelmente criado como a riqueza está sendo constantemente criada. Excluído o maelström técnico, o seu valor teórico, a "Arte da Fuga" é um exemplo sofisticadíssimo de códigos se interpenetrando - códigos que vêm de um contínuo de evolução que vai desde o alvorecer da música polifônica no fim da idade média.

Dito isso, Univers Zero para quem resolver se aventurar. Vale bem a pena, mesmo que você nunca vá além. Se alguém tiver uma gravação da Arte da Fuga que eu não tiver - eu faço coleção - podemos trocar em CD-R.