Anacoluto: caffeine for the mind, pizza for the body, sushi for the soul.

"We're not, as some people maintain, obsessed with pop culture so much as we're obsessed with its possibilities for stratification and dateability." (Thurston Moore)

11.3.03

Música para tempos de guerra

Em primeiro lugar, digam o que disserem, sempre é legal ouvir euro-metal muito pesado com letras em latim. Acho que somente isso já seria suficiente para uma boa infatuation com o Tanzwut. Adicione a isso as gaitas de fole e alguns vocais adicionais gravados pelo atual herdeiro do conde Vlad "Dracul" Tepes (sim!). É muito divertido.

Na verdade, é mais interessante que isso. Os membros do Tanzwut são exatamente as mesmas pessoas que formam o Corvus Corax. Uau!

Durante dez anos, Corvus Corax foi um grupo muito sério, admiradíssimo pela crítica, que pesquisava compilações de música secular da Idade Média e fazia discos e shows. Um dos primeiros discos trazia um manifesto que denunciava a forma como o circuito acadêmico de música medieval apresenta quase exclusivamente peças sacras. O lema do grupo passou a ser "Inter Deum et diabolum semper Musica est".

Ao vivo, Corvus Corax sempre foi incendiário. Existe, inclusive, uma incipiente cena de troca de bootlegs similar àquela que existe com o Grateful Dead. A hype se justifica não apenas porque há uma grande quantidade de material - principalmente escrito pelos próprios membros - que nunca foi gravado em estúdio, mas também por causa da incrível energia com que se executa esta música que poderia ser chata e academicista.

Daí a minha insistência periódica em afirmar que os Corvus Corax são os verdadeiros salvadores do rock. Muitos previram que as guitarras desapareceriam. Mas eles mesmo cruzaram a fronteira, e se reformaram como uma banda de euro-metal à Rammstein. Tanzwut.

Dentro de toda aquela espinha dorsal teórica que tenho tentado estruturar, há aqui em primeiro lugar uma grande mistura de códigos. No máximo de sua popularidade, de sua selvageria roqueira, Corvus Corax sempre teve uma indelével edge intelectualizante. Certamente não importa quando você está no meio da multidão quebrando os ossos ao som de "Bärentanz", mas no momento de refletir sobre a música, a sua constituição interna é, sim, importante.

Corvus Corax nunca foi um produto de música popular informado pela música medieval academicamente estrita, mas um produto de música acadêmica informado pela energia do rock. A própria estrutura da "performance selvagem" faz sentido acadêmico porque se trata de peças que eram populares em seu tempo, possívelmente recopiladas por algum monge que viu a tanzwut passar.

A tanzwut é a célebre "mania da dança", sobre a qual lemos às vezes. Conta-se que quando a peste negra chegou à Europa, dizimando cidades inteiras, camponeses passaram a abandonar todo o trabalho e dedicar-se a dançar até as últimas energias. Já que a morte era iminente, a única coisa que fazia sentido era dedicar-se a esta festa de contornos existenciais um tanto dark.

Às vezes, quando alguém consegue me arrastar a um baile ou uma dessas festas de boate, tenho a impressão de estar assistindo a uma tanzwut.

Pois bem. Tanzwut, a banda de rock, é precisamente o inverso: euro-metal levemente informado pela música medieval que dezenas de grupos passaram a fazer a partir da repercussão do Corvus Corax. Simultâneamente celebratória e agressiva, a imagem de uma tanzwut parece mesmo justificar a opção pelo tal do "estilo Rammstein". Em si, é um estatuto teórico muito menos interessante. Deformações horríveis de música clássica são feitas por muita gente - inclusive instrumentistas de técnica virtuosística - e não há nisso novidade. O problema do Tanzwut se torna mais interessante, no entanto, por duas pequenas exceções ao modelo ELP-roqueiros-estuprando-os-clássicos.

A primeira é relativamente óbvia: são as mesmas pessoas. É um pouco, forçando muito a analogia, como quando Brubeck ou Stephane Grapelli usam o seu treinamento erudito a favor do jazz. Não ouvi o Tanzwut completo e muito menos tudo que há do Corvus Corax, mas seria um trabalho interessante estudar a auto-referencialidade, as citações que os discos do Tanzwut podem estar fazendo da obra do Corvus Corax. Se eles forem espertos, podem construir ao longo dos discos uma obra fascinante.

A segunda é que Corvus Corax e o subseqüente movimento de música neo-medieval não são precisamente música erudita, tanto por sua falta de erudição, de rigor no sentido da complexa tradição musical européia - mesmo que a pesquisa seja feita de forma rigorosa e as interpretações sejam aproximações inteligentes do espírito da música - como pelos canais e público que acaba atingindo. Toda uma juventude "gótica" se voltou para o medievalismo a partir de Corvus Corax.

Juntemos as duas coisas. Tanzwut parece resultar de um certo desconforto no atrito entre estudos medievais mais estritos e música "comercial", popular, no mesmo sentido que as canções do Corvus Corax podem ter tido na Idade Média. O último disco do Corvus Corax que conheço - embora haja a promessa de continuar gravando como Corvus Corax - chegou a ter uma tentativa constrangedora de crossover, "Mille Anni Passi Sunt". O nome Tanzwut permite fazer música "medieval" para os dias de hoje sem romper com o rigor acadêmico que a maioria dos seguidores do Corvus Corax já abandonou.

Muitas vezes a música que leva o nome de uma banda é o seu maior manifesto - pense "Black Sabbath" - e Tanzwut não quebra a tradição. Em "Tanzwut", a canção, ouvimos guitarras secas, processadas, típicas do Rammstein, e a voz rouca, germânica, berra, militar: "Inter Deum et diabolum semper Musica est".

Quando digo que a crítica de rock pode ser muito mais interessante que a crítica de cinema, I mean it!