Anacoluto: caffeine for the mind, pizza for the body, sushi for the soul.

"We're not, as some people maintain, obsessed with pop culture so much as we're obsessed with its possibilities for stratification and dateability." (Thurston Moore)

26.2.03

Não me orgulho particularmente do resultado do texto, mas há tempos que venho querendo escrever sobre o assunto no blog, e acabou surgindo numa polêmica off-topic sobre mercado de trabalho para humanas numa lista de analistas do mercado financeiro. Na falta de mais vontade e mais tempo, vai para o blog o que escrevi por lá.



Mercado de trabalho é mercado de trabalho. Para começar, depende da performance econômica do país. A situação está difícil até para engenheiro civil com doutorado em materiais no MIT. O que os jornais fazem - e eu vi isso de perto, apesar da minha habilitação ser cinema - é contratar estagiários e botar pra trabalhar. Uma menina que entrou junto comigo foi contratada no segundo período e saiu assinando matéria logo no primeiro mês de estágio. Depois é só demitir e contratar mais estagiários por 400 reais.

Isso - e quase todas as mazelas da universidade brasileira - se devem a uma grande confusão sobre o papel da universidade. Em primeiro lugar, enquanto é conseqüência do passar pela universidade o aprendizado de uma série de ofícios que podem ser oferecidos no mercado de trabalho, não é a função principal da universidade. E isso fica claro no curso de jornalismo, que não ensina jornalismo, mas "ciência da comunicação", o que os americanos chamam de "media studies".

Se você vai olhar o fluxograma de um curso de comunicação, mais de quatro quintos das horas de aula são tomadas por cursos teóricos dessa ciência. Tenho as minhas restrições epistemológicas ao que se ensina por aí, mas é uma ciência humana do mesmo tipo que a sociologia e a antropologia. Mais: como não temos programas específicos em áreas como lingüística, o corpo docente é povoado de figurinhas divertidíssimas de áreas teóricas supostamente interessantes, mas longe da tal "realidade do mercado" que significa um ofício específico (e aliás, muito estreito, se comparado com o de um economista, um engenheiro ou um médico) que as pessoas pensam estar estudando.

Um professor de lingüística já me confessou que as habilitações-ofício do curso de comunícação são uma "isca" para atrair as pessoas para a vida acadêmica, já que "a academia é o telos". O que acaba acontecendo é que, por força da obrigatoriedade do diploma, aspirantes a exercer um ofício simples que podia ser ensinado nos três anos de um segundo grau técnico têm que passar por quatro anos do que é em grande parte um programa de de doutrinação ideológica, uma escola de guerrilheiros midiáticos gramscianos. Não por acaso, a mídia cada vez mais é predominantemente de esquerda. Numa época em que os jovens estão (estamos, embora eu tenha tido um vislumbre do nirvana e pulado fora) suscetíveis a toda experiência de formação filosófica, passam anos a ouvir as maiores patranhas sobre a própria estrutura da realidade social tal como a experimentamos.

Acho que basta dizer que o meu curso de sociologia na faculdade de comunicação ignorou completamente que Weber e Durkheim existem, dedicando meses a fio a desfiar com minúcia as mais obscuras sutilezas das diferentes correntes de pensamento marxista. O pior acontece no período seguinte, quando apresentam Foucault e Deleuze a jovens que não conhecem Platão e Aristóteles. É trágico: uma juventude que conhece superficialmente o chique do pensamento de vanguarda francês sem ter tido contato com as bases mesmas da civil-ização moderna.

Daí você vê um Observatório da Imprensa publicando idiotices sobre a capilaridade do poder.

É claro que a situação é menos extrema em outras áreas. Certamente academia e prática são muito mais próximas na outra área com que tive algum contato, a economia. Enquanto o jornalista vai ouvir no seu primeiro dia de estágio que "na prática a teoria é outra", um economista precisa saber derivar porque precisa saber derivar. E precisa saber muito mais. É por isso que economista nenhum arruma estágio no segundo período e começa atuar direto na ponta do processo produtivo como aconteceu com a amiga minha que mencionei.

O bacharelismo sempre foi uma característica brasileira - o título de doutor sempre foi por excelência a forma de ascensão social. O problema é que a universidade agora é vista como a única forma de aprender um ofício valorizado pelo mercado de trabalho, o que a torna, a fortiori, a única forma de "subir na vida". É ESSA A ORIGEM DE TODOS OS PROBLEMAS DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA.

Um exemplo claríssimo é a proliferação dos cursos caça-níqueis. Ora, existe demanda por um curso fajuto de jornalismo na Estácio porque é dificílimo conseguir uma vaga numa boa universidade. 2% dos candidatos ao curso de ciência da comunicação da UFRJ passam; a Mensa aceita pessoas que estejam ente os 2% superiores no seu teste de inteligência. Mas deveriam todos os jornalistas ser gênios?

Daí a polêmica das cotas raciais. A base da argumentação de seus defensores é que não é justo que a universidade, esse passaporte para o reino encantado da classe média, esteja fechada aos negros.

O triste é que pouco mais da metade dos milhares de bacharéis que se formarão nos próximos anos vai acabar em algum lugar que compense a sua rica formação. O que mais se vê é publicitário fazendo bico em telemarketing.

O triste é que a médio prazo o jogo tem soma negativa. Não se trata de academia ou ofício, mas de simbiose academia-ofício ou nada. O triste é que à medida que a universidade se deteriora em ensinadora de ofícios, a produção acadêmica do país tende a desaparecer, e os ofícios passam a ser mal ensinados, o que deterioria o valor do profissional no mercado de trabalho. Sinceramente, se eu fosse de um setor de RH, deixaria de contratar formandos da UERJ a partir da primeira turma da cota racial.

Claro, a solução é dificílima de implantar: cursos técnicos de melhor nível, que ensinem os ofícios específicos demandados pelo mercado. Um economista não deveria estar fazendo pesquisa de preço em supermercado. Se tivéssemos cursos de estatística de nível médio, teríamos faculdades de economia menos lotadas, menos concorrência nas áreas que realmente interessam a quem se dispõe a mourejar por quatro anos extras num curso de economia, melhores oportunidades para aqueles que não desejam passar a juventude estudando, e por último, para as empresas, uma melhor solução para o problema da informação assimétrica na contratação - as empresas não sabem quem são os profissionais de alto nível - o que reduziria para elas a necessidade de coisas não racionais como salário-eficiência, custos de vigilância...

Os austríacos sabiam desde Menger: podemos fazer mil manipulações artificiais tanto do lado monetarista (expandir/contrair a demanda agregada) como do lado "estruturalista" (expandir/contrair a oferta agregada), mas a economia só cresce consistentemente se ganha em eficiência, em produtividade. Ora, ganhamos em eficiência com as revoluções tecnológicas, mas principalmente aumentando a produtividade marginal do trabalho. Para isso, precisamos alocar melhor as pessoas.

Ninguém deveria ser obrigado a ir à universidade. Ninguém deveria estar num quinto período de economia matando aula porque detesta, detesta, detesta, econometria. O chato é que ao virar a mesa você sempre enfia o dedo no olho de alguém. O chato é que é as conseqüências de uma mudança no modelo da educação profissional brasileira são muito mais capilarizadas, e afetam gente muito melhor posicionada políticamente do que, por exemplo, a "classe" dos servidores públicos, que atravanca uma reforma essencial para permitir a queda dos juros, a recuperação da economia, o aumento da oferta de vagas para engenheiros civis...

O chato é que eu não sou o imperador do mundo, e não posso consertar o que está errado para criar a sociedade perfeita. Pelo lado bom, como não sou imperador do mundo, vocês não são obrigados a ouvir Kultivator o dia inteiro, todo dia..